SEU SEVERO, DONA CARME
E O GATUNO INESPERADO
Uma adaptação do conto de M. C. GARCIA
O GATUNO do seu livro POVAREJO
Por: Rosa Regis
Dona Carme e Seu Severo
Era um idoso casal
Que morava, há muitos anos,
Na Avenida Marginal
Medeiros, às proximidades
Do Presídio. Em arrabaldes
Da cidade de Natal.
Por muito tempo essa área
Foi, paradoxalmente,
Muito pacata. Apesar
De um presídio existente
Nas suas proximidades.
Fugindo às realidades
Dos fatos não condizentes.
Mas isso, até que um dia,
Se não me engano, em dezembro.
Melhor dizendo: uma noite,
Contaram-me. Eu bem lembro:
A calmaria virou
Num inferno, e transladou
Para cá, de lá. Relembro.
Seu Severo e Dona Carme
Que há muitos anos moravam
Ali, nunca reclamaram.
Eles até que gostavam.
Viviam num paraíso,
Sem qualquer um prejuízo.
Pois nada os incomodavam.
E na taciturnidade
Daquele antro de horror
Não se ouvia nem um “ai”
Denunciando o furor.
Porém lá dentro, no âmago,
No coração, no estômago
Do cárcere, imperava a dor.
Enquanto no exterior
Seguia-se o dia a dia
E as noites bem dormidas
Na mais santa calmaria,
As crianças embaladas
Por canções que são cantadas
À Santa Virgem Maria.
Contudo, naquele dia
Via-se uma agitação,
Um alvoroço nas ruas,
Soldado de arma na mão
Querendo pegar alguém
Que ninguém sabia quem.
E daí gera a confusão:
Tiros perdidos no ar;
Gritos de horror e euforia;
Já não se entendia ao certo
O que lá dentro ocorria.
O que estava mesmo havendo
Ninguém estava entendendo.
Só se ouvia a gritaria.
Da brecha da sua porta
Dona Carme observava
O agito. E cada vez
Mais assustada ficava.
Percebeu, desesperada,
A fumaceira peitada
Que pelo Céu se espalhava.
E aquela fumaça toda
Que ela viu, com o coração
Disparado, vê que vem
Da Casa de Detenção.
Diz ao marido, tremendo:
- São os presos. Estou vendo.
Acho que é rebelião!
Era isso mesmo leitores!
Era uma rebelião.
Os presos, abarrotados,
Explodem num pavilhão,
Revoltados com a saída
De alguns, por eles tida,
Mesmo, como “arrumação”.
É que era um fim de ano!
Então devido ao evento
Do Natal, alguns saiam,
Os de bom comportamento,
Pra com os parentes passar
O Natal pra festejar
O Santíssimo Nascimento.
Os que ficam, insatisfeitos
Por não terem a regalia
Que os que saíram tiveram,
Raivosos, à revelia,
Ateiam fogo aos colchões,
Roupas, lençóis... Uns bobões!
Que o mal pra si mesmos criam.
Nada de grave, porém,
Lá no presídio ocorreu.
Sendo o incêndio controlado.
A agitação feneceu.
Pois logo, logo, os soldados
Controlam os rebelados.
Ninguém feriu-se ou morreu.
Porém cá fora o casal
De velhos que ali morava,
Bem pertinho do presídio,
De uma outra forma pensava:
“Já que antes não houvera
Rebelião tal qual, era
Algo que a tudo mudava”.
Estavam estarrecidos
Com tudo que acontecera.
Moravam há muitos anos
Ali, e nunca ocorrera
Nada naquela prisão
De uma tamanha extensão,
Com tamanha barulheira.
Já haviam ouvido falar
De alguns casos parecidos
Em que ocorreram mortes
De presos. E alguns fugidos,
Desesperados, sem tino,
Sem saber qual o destino
A tomar – os evadidos,
Invadiam qualquer casa
Que encontrassem pela frente.
Porém, fora há muito tempo!
Não era nada recente.
E, sendo assim, o casal
Nunca passara por tal.
Por isso sente o que sente.
Não conseguem dormir mais.
Os olhos arregalados!
Passam a noite sem pregá-los,
Zanzando... desnorteados,
Pensando no que dissera
Chicó, quando ali viera
Morar, há anos passados.
A Dona Carme, assustada,
Fechava os olhos, e via
Gente em sua direção
Que gritava, que pedia
Ajuda. Homens machucados,
Espancados, baleados,...
E, dormir, não conseguia.
Não conseguindo dormir,
Decide se levantar
Da cama e ir pra cozinha
Os pratos sujos lavar.
Para tentar esquecer
O que acabou de ocorrer
E para o sono chegar.
Mas, lavando uma panela,
De repente... ela estacou
Ouvindo um barulho estranho
Vindo da sala, e gritou,
Correndo para o marido
Que, no quarto, de ouvido
Atento estava, e escutou.
Ele, que estava arrumando
A cama e, ainda ligado
No que ocorrera de tarde,
Não vê o jeito assustado
Da esposa que, pensando
Que ele estava escutando,
Nada disse do escutado.
Assim, nenhum comentário
Ela fez do ocorrido:
Nem do que havia escutado
E nem do medo sentido.
Trancou a porta e, rezando,
Aos cochilos, vai deitando
Pertinho do seu marido.
Seu Severo já roncava
Pois o cansaço o vencera.
E dona Carme o seguira.
Ao sono, enfim, se rendera.
Duas horas se passaram,
Não mais que isso! Acordaram
Com terrível tremedeira.
Um barulho, horripilante,
Deixa o casal assustado
Com o coração à boca.
Era um zuô desgraçado!
Parecia alguém pisando
Nas telhas, estas quebrando,
Sem ter o menor cuidado.
“Na certa, um dos foragidos
Que tentava destelhar
A casa em busca de abrigo
E, procurando escapar
Aos soldados que o seguia,
Ou melhor: o perseguia
Para, de volta, o levar.”
Severo pulou da cama
Como um gato, e agarrou
O machado que, há pouco,
Do lado dela deixou.
Ao seu lado, Dona Carme
Exibe, com certo charme,
Um facão que encontrou.
E, grudados um no outro,
Para a sala eles seguiram,
Devagarzinho, no escuro,
Pois, de acordo, decidiram:
- Não deveriam acender
A luz, pro homem não ver.
Barulho não mais ouviram.
O silêncio era total
Invadindo a escuridão,
Somente quebrado pelo
Baticum do coração
Da velha, que mais sofria.
Qual vara verde, tremia.
Enquanto que o velho, não.
O velho seguia impávido,
Com segurança e firmeza
Tal cangaceiro ou guerreiro
Da mais alta realeza.
Um samurai, que afã
Tem, na sua mente sã,
De vencer. E com nobreza.
Tendo o barulho cessado
Ali, na cozinha surge,
Com maior intensidade.
Ao velho, parece, urge
Que tome uma decisão
E ataque de pronto, então.
E este, de raiva, ruge.
Parecia claro que
Alguém estava tirando
As telhas de uma em uma,
Um buraco preparando.
De repente ouve-se um baque!
“E o ladrão, pro ataque,
Pronto já estava, esperando”.
Seu Severo, bem disposto,
Não contou estórias, não
Já correu para a cozinha
Com o machado na mão,
Deixando a mulher parada
Na sala, e estatelada,
No meio da escuridão.
Pois era que a Dona Carme
Já mais que amedrontada,
Passava mal, no escuro,
Com medo, desesperada!
Nem gritar não conseguia.
A sua voz não saía.
Tremendo e toda gelada.
O Seu Severo, ao contrário,
Forte de se admirar,
Tateava no escuro
Pra, de surpresa, pegar
O bandoleiro – o bandido
Que tinha, então, se atrevido
À sua casa adentrar.
Mas, viu dois olhos de fogo
No meio da escuridão!
Ficou todo arrepiado.
“Aquilo ali era o cão!”
Aí, desceu-lhe o machado!
Ouviu-se um som abafado
De um baque fofo no chão.
Um grito forte e estridente
Eclodiu na madrugada,
Acordando Dona Carme
Que jazia desmaiada.
E ela ouvindo o alarido,
Corre a ajudar o marido
De uma forma inesperada.
Foi correndo até o quarto
Pegar uma lamparina
Que acendeu, e pra cozinha
Vem, e a cena ilumina.
Depara-se com a desgraça
Que ocorreu, e acha graça
Quando com a verdade atina.
O marido, estatizado
Feito uma pedra, lhe diz:
- Olha aí mesmo, mulher!
O que foi mesmo que eu fiz?
- Eu vou pagar na cadeia!
Mas ele não aperreia
Mais ninguém. Esse infeliz!
- Um homem na minha idade
Não tem mais o que perder.
Vou preso, mas como homem
Que procurou defender
Sua família, o seu lar!
- Vou ocupar seu lugar
Mas, cumprindo o meu dever.
- Vá morar com sua filha
Que tudo está resolvido.
E Dona Carme, pensando
E olhando pro seu marido:
“Ainda dera pra ver
O animal a correr
Logo após o ocorrido.”
Era aquele gato cinza
Que gostava de roubar
O peixe da frigideira
Quando este estava a assar.
Era um gato abandonado
Que vivia do bocado
Que conseguia afanar.
E agora, no sufoco,
Sentindo-se ameaçado
De morte, tenta subir
Para alcançar o telhado
Pela parede. E atina,
Ainda que a lamparina
O deixasse encandeado.
Acertou a mesma brecha.
Fugiu. E envergonhado,
Depois de passada a ira,
Viu-se o Severo, coitado,
Pela sua confusão
Do gato com um ladrão,
Além dos cacos no chão
Do pote, “morto” a machado.
Salvador-BA, 18/01/2008 – 3h00min.